O CORONAVÍRUS E OS CONTRATOS

Teoria da Imprevisão, circunstâncias extraordinárias e a cláusula “rebus sic stantibus

Os efeitos do coronavírus na saúde mundial, na vida das pessoas, na economia e, consequentemente, nos contratos, são enormes e imprevisíveis. Abaixo, segue trecho de palestra proferida por Paulo Brossard, em 2001, mas de inegável atualidade e pertinente ao tema:

A Primeira Grande Guerra é que mudou o mundo várias vezes sobre todos os aspectos.

Com a inflação decorrente dos gastos desmedidos, mas necessários; necessários, mas desmedidos; e gerando também uma elevação imprevisível de preços, ocasionou alguma coisa que o século XIX não conhecera: a insegurança nos negócios. Fazia-se, então, um contrato para durar cem anos e era um contrato capaz de suportar cem anos, com esta ou aquela adaptação, mas quase que imemorialmente.

Os serviços de eletricidade na França, por exemplo, eram todos eles na base do carvão. O preço do carvão aumentou desmedidamente de um ano para outro, e o preço da eletricidade estava fixado para durar um século … A realidade dos fatos, independentemente da vontade dos contratantes, não podia deixar de interferir nas relações jurídicas celebradas em tempos normais, em plena paz.

As empresas que foram à Justiça Francesa, que foram até a Corte de Cassação, não lograram êxito, pois à luz do art. 1134 do Código Civil o contrato faz a lei entre as partes. O Conselho de Estado, no entanto, entendeu de aceitar a nova realidade como se fosse caso de força maior. Depois, foi editada a Lei Faillot, em 1918, que sancionava a jurisprudência do Conselho de Estado da França.

Todo mundo sabe que a denominada Teoria da Imprevisão foi concebida nos tempos medievais e desenvolvida por canonistas em relação a pactos de trato sucessivo quando da ocorrência de fatos imprevisíveis ao tempo do contrato. Com o tempo e o advento de ideias novas, a teoria caiu no esquecimento. Pois bem, dois anos antes do começo da 1ª Grande Guerra, em 1912, um jovem jurista italiano, Giuseppe Osti, publicou na Rivista di Diritto Civile artigo rememorando a esquecida cláusula rebus sic stantibus, e no seguinte, 1913, na mesma revista, voltou ao assunto.

Eis senão quando, em 1914, um tiro lá em Serajevo provocou o que veio a provocar, e começou a maior guerra até então registrada nos anais da humanidade, e em toda parte começaram a surgir livros acerca da teoria da imprevisão ou da superveniência, pois a profunda alteração da vida dos povos não poderia deixar de atingir os contratos de longa duração antes celebrados”.

A lúcida e culta manifestação, acima reproduzida, nos traz para a realidade atual, em que necessariamente muitos contratos vão exigir repactuação e revisão. O flagelo da pandemia impõe a necessidade de uma atitude solidária entre as nações e as pessoas. Sacrifícios serão impostos a todos indistintamente, cujos impactos econômicos já se fazem sentir e são terríveis, com consequências de gravidade superlativa. Este comentário não tem a pretensão de ser um artigo, apenas uma breve reflexão sobre os desdobramentos jurídicos decorrentes do cataclisma que estamos vivendo.

A mesma solidariedade que preside as relações humanas para enfrentar o problema de saúde, também deve ser a diretriz para que as relações contratuais possam ser equacionadas mediante entendimento para reajustes e revisões. Acreditamos que nas eventuais discussões judiciais, com base na teoria da imprevisão, a boa-fé haverá de orientar as decisões.

Se ainda não existe vacina para conter o COVID-19, para combater quem eventualmente queira tirar proveito e se locupletar com essa situação de crise, há um remédio insubstituível; a boa-fé, que pode ser a bússola a indicar o norte a os julgadores – e que conta com expressa previsão legal. A boa-fé, é importante dizer, não se aplica de maneira idêntica em todos os ramos do Direito; judicialmente, entende-se que a boa-fé que preside as relações consumeristas e trabalhistas, por exemplo, não possui a mesma extensão nos contratos empresariais – chegando a ser mitigada neste ramo, como definem diversas decisões do STJ. Mas, ainda assim, a adoção de padrões de comportamento negocial e contratual consentâneos com as provações do momento que estamos atravessando, especialmente da boa-fé, poderá ser o fiel da balança para a difícil decisão de um juiz sobre litígios que venham a surgir em decorrência das dificuldades advindas deste período.

Estamos passando por uma provação sem precedentes para essa geração. Porém, com a SOLIDARIEDADE presente nas questões sociais e de saúde e a BOA-FÉ nas relações jurídicas, a humanidade haverá de superar esse extraordinário desafio.